A nova confusão com o ENEM mostrou mais uma vez a grande capacidade dos brasileiros de concentrar no que menos importa, deixando de ver ou considerar as coisas de fundo. Está bem, o INEP tem sido incapaz de administrar o sistema de provas que montou. São problemas logísticos, que cedo ou tarde acabarão se ajustando.O que interessa saber, no entanto, é: precisamos deste ENEM, com este formato? Que vantagens e problemas ele traz? Não existem outras maneiras melhores de fazer isto?
O principal objetivo do ENEM, desde suas primeiras versões, foi estabelecer um padrão de referência para as pessoas que se formam no ensino médio. Como as escolas são muito diferentes, e as notas dadas pelos professores de cada curso são subjetivas, ter um padrão nacional permite avaliar o que o aluno realmente aprendeu, e, de tabela, dizer algo sobre suas escolas, quando temos um número significativo de alunos da mesma escola participando. São informações que também podem ser usadas por universidades em seus processos de seleção.
Este tipo de avaliação final do ensino médio existe em muitos países, mas de forma muito diferente da nossa. Na Europa, a tradição é fazer com que o aluno passe por uma avaliação feita geralmente nas próprias escolas sob supervisão externa – é o Abitur alemão, o GCSE inglês (General Certificate of Secondary Education), ou o Bachaleaurat francês. No caso inglês, o aluno tem que ser avaliado em conteúdos centrais (core subjects), inglês, matemática e uma entre diversas opções em ciências) e diversas outras opções em línguas, tecnologia, humanidades, ciências sociais e artes. O importante é o que o aluno pode escolher os exames que quer fazer – existem cerca de 40 opções – e as diversas universidades e cursos usam os diferentes resultados conforme seus critérios próprios. Na Universidade de Warwick, por exemplo, diz o Site, “all applicants must possess a minimum level of competence in the English Language and in Mathematics/Science. A pass at Grade C or above in GCSE English Language and in Mathematics or a Science, or an equivalent qualification, satisfies this University requirement. For many courses, requirements are above this University minimum, so you should check the relevant course-specific entry requirements”. A outra característica importante do sistema inglês é que os exames são feitos por cinco “examination boards” independentes, organizações públicas ou privadas de competência técnica reconhecida. Se trata, portanto, de um sistema aberto, com muitas opções, que não coloca os alunos na camisa de força de um exame único como o ENEM, e que as universidades usam conforme achem mais conveniente.
O melhor exemplo de um outro modelo é o Scholastic Aptidude Test – SAT – utilizado nos Estados Unidos. Uma diferença importante com o modelo europeu é que o SAT não busca medir conhecimentos, e sim competências, em pensamento crítico, matemática e escrita. O SAT é desenvolvido por uma fundação não lucrativa de direito privado, o College Board, e administrado por outra instituição, o Educational Testing Service. Enquanto que o sistema inglês atribui conceitos de A a D para aas provas, os resultados do SAT são estatisticamente padronizados, e comparáveis ano a ano. Quase todas as universidades americanas usam o SAT como um dos elementos para a seleção de seus alunos.
Estes exemplos mostram que as opções, para este tipo de prova, são ou fazer uma prova baseada em conteúdos, mas de forma diferenciada e descentralizado, e dando opções para os estudantes, como na Europa, ou fazer uma prova de competências gerais, mais unificada (mas sempre diferenciando pelo menos entre as áreas de linguagem e matemática). No caso do SAT, o exame é dado várias vezes por ano em muitos locais diferentes, em um sistema computadorizado no qual as questões vão aparecendo para o estudante conforme ele vai avançando.
O ENEM atual é uma combinação perversa dos dois modelos: por um lado, como na Europa, ele é fortemente baseado em conteúdos, aparentemente para atender às demandas das universidades, para que elas possam, no limite, dispensar seus próprios vestibulares; mas ele não dá opções, e além disto é aplicado em um momento único, quando o exemplo do SAT mostra que existem alternativas para isto
O resultado, além do pesadelo burocrático e logístico das provas, é que ele vai contra a necessidade de criar mais alternativas de estudo no ensino médio, força os alunos a uma maratona de dois dias de prova cujo resultado pode decidir seu futuro, e muitas das principais universidades do país relutam em usar seus resultados como critério de admissão para seus cursos.O ENEM atual teria uma outra função, que seria permitir que os alunos pudessem se candidatar, de uma só vez, a diferentes universidades em todo o país. Mas, na ausência de um sistema adequado de residência universitária e bolsas de manutenção para os estudantes, é muito improvável esta mobilidade esteja sendo criada, e instituições de excelência, como a UNICAMP e o ITA, já fazem tradicionalmente vestibulares de alcance nacional.
O que fazer? Algumas sugestões: 1) tirar a implementação do ENEM do INEP e do sistema de licitações anuais, e colocar em uma ou mais instituições especializadas, a ser constituidas; 2) voltar ao formato de uma prova única geral de competências centrais aplicada de forma descentralizada e por computadores; 3) abrir o leque de avaliações por áreas de conhecimento, conforme os interesses dos estudantes e das universidades que queiram fazer uso destas informações. 4) criar um sistema adequado de financiamento do sistema, com contribuições das universidades que usam os resultados, dos alunos que fazem as provas (com as devidas isenções) e do governo 5) dar transparência ao sistema, publicando os documentos técnicos e as matrizes de referência para as diferentes áreas em avaliação.
Estas podem não ser as melhores sugestões, mas é isto que deveríamos estar discutindo, e não os erros logísticos que têm surgido, embora eles sejam, pelo menos em parte, conseqüência do sistema mastodôndico de avaliação que se decidiu adotar,
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